Como geralmente é

manteiga derretendo,
água na chaleira fervendo
tão bom quanto bom dia
e já se passa da meia noite
os dias escorrem amanteigados
e tão quentes
queimam as solas dos pés
macio, crocante
sai do forno fumegante
pão sovado com café
em porcelana branca: xícaras
e quem dera apareçam sonhos..

bolos,
biscoitos.

Um ano na vida de Roberval

Sentava-se pontualmente às 12h. No começo a corrente de ar da varanda lhe agradava, depois virou hábito, como que um ritual. Sozinho, desde a morte da esposa em 86, Roberval cuidou dos três filhos como deu e sem maiores ambições, morou a vida toda no sítio que herdara de seu pai. Gostava daquela vida, dizia acomodando o pigarro na garganta.
Depois de crescidos, os filhos de Roberval decidiram viver na cidade. O pai relutou por algum período, mas viu que nada poderia fazer. Bradava na varanda, resmungos a plenos pulmões: deixe que vão, mas que não voltem!
Desde a partida dos filhos, Roberval saiu cada vez menos. Já cansado do cultivo do gado, delegou a um capataz que cuidasse do que pudesse e só viesse lhe falar em caso de extrema necessidade. Trancava-se no casarão durante os meses de inverno, saindo apenas para a sua religiosa estadia na varanda.
O mato crescia alto. A capital passara por revolução. Roberval não soube, mas em 98 morreu Rubio, filho do meio. Há quatorze anos não via amigos, parentes, nem desconhecidos quaisquer. Limitava-se ao seu capataz, seu contato fora da redoma que criara.
Seu único prazer, dava-se ao meio-dia. Assim como seu único ofício. Dizia ser empregado de si mesmo, pois se obrigava a levantar e viver todo dia, mesmo que sem vontade.

Há mais ou menos um ano, não o vi mais na varanda em seu horário habitual. Vi também que o mato havia sido aparado, e pelo modo que estava, com fequencia. Rezei para Roberval, pedi paz àquela alma quase que abandonada por Deus, que sofrera tanto em terra e que em céu pudesse habitar na misericórdia divina.

A caminho de casa, há pouco, vi a cadeira de balanço ocupada por um homem de aura branca. Era Roberval, vivo como eu ou até mais. Descobrira a cromoterapia de uns tempos para cá e no crepúsculo não sentia felicidade maior.

Sobre ar comprimido

encontrar-me nas passagens daquela antiga história,
enquanto ainda é cedo posso fechar os olhos para a diferença física da matéria
e fingir
que sei, quem sei e quem será.
entre rodando e rodar, repouso o meu aconchego no seu lar
e acolho os devaneios e divagações, em conceitos que eu já conheço de cor
respiro
revejo aquelas sombras
das sombras do meu passado

inspiro
para e sobre as continuidades
expiro
e sigo para um novo começo - e um novo fim.

Lunaê

no seu melhor tom de anil, o céu se despede - lenta e silenciosamente
faz da deixa, ferida muda e faz de significativo o que soa ininterpretável
a luz abandona o verde do mar e leva com ela o tom cobre de suas sombras
logo despontam luzes pequeninas e atrás das cortinas, surge a lua amarelada
reluzente nos olhos, daqueles que estão conosco em olhos
e acolherada em luz, para quem não caiamos em abandono.

Entre-unidades

tão distante
em volta
tanta gente
espera
entretanto
escuta
em silêncio
impera
sobre as coisas
canta
sem juízo
entrega
e em coro
enama
que só vê
se cega
no luar
profana
que a razão
faz terra
mas
quando aos deuses clama
faz-se credo
e vela.

Nuvem de chuva

Do costume fez-se insólito
romance moderno em vidas embaraçadas
sem querer, juntas
sem querer, separadas

Que em círculos roda
Rodando quem muda
Mudando-lhe a forma

Formando-se uma
Rodando, Nenhuma
E distorce
Fazendo-se alguém
que não sabemos quem

Romance unitário, transa de livros, amor paralelo
sem vias para chegar à destino
- sem destinatário.