Sobre desencontros e outros males

E depois de dias sem aparecer, ele voltou. Não me olhou nos olhos, mas disse bom dia como sempre e elogiou meus cabelos. Eu não estava aflita, nem preocupada, tampouco estive brava por ter sumido de novo. Cumprimentei-o com a polidez que sempre cultivei, me servi de café e deixei a cozinha.
Mais tarde deixei aquela casa com tudo o que nela tinha. Ameacei chorar a cada esquina que avançava e sem ter para onde ir, vaguei pela cidade dias a fio, lamentando a minha dor.
E depois de dias sem aparecer, eu voltei.

Queda complementar

goles amargos, olhos apáticos
no escuro vive um cego
que só não vê o que não quer
meio-vive
meio-morre
quando dorme, coleciona cores
e escreve pela noite
histórias que as mãos não conhecem
e esquece
que tem casa, que tem dono
que na madrugada não encontra consolo
quando das cores, sonha dores -
e transpira obscuridades
acordado, já não sabe quem é
na luz vive a escuridão
no mundo, um mundo a sua volta
fundo mundo
abismo complementar,
enquanto caindo - vai.

Assinatura

só deixou ficar rapidamente, é e não é, como quem sabe. mas sabe?
mais do que está escrito, mais do que foi falado, mais do que a imagem do espelho diz ser.
não é.
se encontrar na literatura, ajeitar a compostura, alienar a estrutura.
muda.
repete-se. regula-se. renova-se. sempre no ciclo três.

repartido.
dividido.
diluído.

com a argumentação necessária, pega a navalha e despedaça a lembrança.
faz da história nunca vista e vista grossa sobre o reportado.
conta outra, contra uma, faz mistura. e termina como a imagem do espelho:
desfragmentada.

Chuvis-coar

Eletro-céu às dez da tarde - sob meus olhos. Em cinzas de especulação e conformismo. O céu vai derreter e escorrer em lágrimas, sobre algo que ele nem sabe o que é. Desabará em fúria, desolada, desiludida, desconsolada. Na queda: a desesperança. Na dureza da terra vai virar correnteza. Fugir da tal tristeza. Vai fluir no mundo real, vai viver amor carnal, vai sambar no carnaval. Voltará ao seu normal. E como é mais que natural, quando for hora, fará tudo igual.

Imperfeição

Faíscas azuis em imagens imperfeitas de tanto rebobinar
Serão lembranças de uma festa? Talvez não.
São imagens negras e distorcidas, são ilusões desenhadas à carvão, que não deixam.
Parece ser carma, parece ser coma, parece ser asfixia disfarçada.
No guarda-volumes da memória, estão estas maldições. Nas noites azuladas, se vestem de vermelho e fingem ser condição necessária de felicidade.

Não são.

Contanto que razão não faça

sentou-se naquela cadeira preta, conjunto da mesa redonda. pôs os pés para cima e curvou o pescoço para ver o céu. grande, pensou. azul assim, me faz lembrar um dia. mas qual?
olhou um instante para dentro da casa, observou o tempo passando para tudo. não que tenha visto isso, mas isso estava escrito de alguma forma, impregnado de lembranças, dos azulejos amarelos até o piso gelado pelo qual havia sido proibido pisar de pés descalços. a imobilidade da casa só a faz mais rica, ao contrário do que se imagina. as imagens comoveram aos poucos, a ponto de aquietar-se em um longo minuto. embora suas feições parecessem dizer algo, não tem sido fácil penetrar em tais pensamentos.
quanta coisa estranha, foi a primeira coisa que saiu da boca. junto a um sorriso tímido e uma respirada ofegante.
o sol estava fazendo sombras. que engraçado, pensou. pensou em pintar o chão daquela forma e depois em colorir alguma página daquele livro pequeno.
hum, preciso ficar velha.
vou dedicar-me duas horas para o projeto, dois dias da semana para estudar aqueles livros, correr todas as tardes, procurar um emprego e decidir logo essa história de graduação.

hum, preciso decidir essas coisas.
hum, acho que café seria bom agora. daqueles saindo fumaça.
vou pegar meu livro, o colchão e deitar aqui. hum, nessa sombra. ah ah, olha lá o cachinho de uva! nossa, já tá roxo desse jeito! olho outro! olha quantos!
mãe! vem ver isso aqui!

E o destino de todos planos escritos, era ser prontamente descartados.

Desconstruções

queria te encontrar
e imediatamente sorrir
sem perder a rima e a regra
eu quero sentar ao teu lado
e dizer tudo o que eu vi
e todas as impressões
que o mundo tanto me dá
sobre preocupações e verões e divagações
e sem conclusão
sem enfim, sem então
fica aberto sobre as nossas cabeças
um céu, talvez um véu
impressão em papel
tudo que eu preciso tanto dizer
e nas ondas que juntos quero tanto ouvir
eu não mando no destino
mas eu quero,
espero.
por enquanto.
espero.

Placas luminosas

luzes por aí
e reflexos de indecisão
pulsam pela emergência
pela música, pela essência
é fácil de se perceber
no ritmo que o coração bate
pula, vibra, contrai
e afoga-se em um copo qualquer
luzes que navegam em olhos,
pensamentos que surgem inexatos
enquanto a rua não se cala,
não se calam as bocas e os pés
não param de pedir continuidade
não há mais,
nem além -
acaba como começa
termina como convém.


Consenso

deixa manifestar
deixa ser
deixa estar

deixa que o mundo sabe
em qual rota continuar

deixa viver
deixa ficar
deixa o vento levar

deixa, que quem se queixa
não tem história pra contar

deixa você
deixa vencer
deixa que na hora certa
acontece o que for pra ser.